11.3.07

Jean-Luc

Estou aqui com a cabeça grudada no vidro, olhando pela janela e fazendo pose para o Godard me filmar. Inclino a cabeça, baixo o olhar, levanto o queixo, escolho o melhor ângulo. Assim está bom, Jean-Luc? Encontro a imagem de Jean Seberg abrindo delicadamente os lábios. Descaradamente a copio. Ela roda seu godê pelas floridas ruas de Paris. Godard roda. O homem de óculos de aros grossos e redondos pretos retribui a meus olhares. Ele sabe que eu não sou do tipo que tira a cabeça da janela quando entramos no túnel. E lá vem ele. Não recuo. O meu reflexo é anti-reflexivo. Minha cara está estampada na entrada do Ana Rosa. Se você quiser me filmar agora, Jean-Luc, terá de ir até lá. Rodo com Seberg até os braços de Jean-Paul. Ele acende um cigarro e me dá um trago. Vamos embora de Paris? Sim, Jean-Paul, Paris já não é mais a mesma. Existe uma linda flor de cerejeira na saída do Paraíso, mas minhas frutas estão no Le Marais. Subo as escadas da Consolação. A garoa molha o jornal do dia. Onde estará Jean-Paul agora? Acossado.

23.2.07

Chove chuva

Uma gota foi suficiente para a dispersão. Duas, três, quatro, cinco, seis... os barcos começavam a balançar com o sacolejo do rio. Agora nem isso mais conseguia ver. A chuva fechara a vista panorâmica como uma cortina grossa, de sarja branca. Estava definitivamente impossível enxergar o que acontecia do lado de lá. De uma a outra, as histórias iam se revelando tristes e heróicas. Choravam e contavam momentos terríveis de suas carreiras com uma prática fenomenal. No menu: madres argentinas, estupradas colombianas, espancadas uruguayas, amputadas paraguayas, exiladas chilenas e festeiras brasileiras. No estaba preparada para tanta terapia. Encerrei. Daquele prédio só queria a vista, de longe. A chuva castigava BsAs e seus cidadãos fumantes. Os prédios modernosos eram o retrato dos porteños. Europeu na fachada e totalmente reaça americano por dentro. Seria possível conseguir um fumódromo que não fosse ao ar livre? Quatro horas de vidas destroçadas para nada. Para nem mesmo ter a confirmação do jantar daquela noite. O que mais importava? Tchica, thica, thica, bum. Uma beira de laje para fumar. Vou mexer meu caldeirão. Um SMS no celular. E BsAs vai reacender! Plim! De volta à cidade-luz dos trópicos. A Paris que fala alto e bebe Quilmes. Rain. I feel it. It's coming.

14.2.07

Estoy aquí

Estoy aquí, sí, de verdad. Estou aqui. No, no sé hablar "cho" estoy aquí. Yo estoy aquí, porra. Abre logo, me deixa entrar. No te ries así. ¿Que paso? No, no me dejan entrar. Me lo perdi todo, tampoco tenia tu dirección. Sí, por favor, dejame entrar. Uff. A imigração é sempre a mesma coisa. Eu parei para tirar o cinto e acho que perdi meu cartão. Não, nunca acreditam em brasileiras viajando sozinhas e sem endereço de hotel. Como você está? Tão magro. Vamos, qualquer coisa. Media lunas ahora? Café, solo. No, no me gusta con leche. Hace quanto! Me encanta todo eso. Essa parte da cidade é horrível, mas é tão verdadeira. Olha o lixo em volta dos navios. Vamos? Agora? Hahahaha. Eu viajei até aqui pra ver esse museu? Não, não, gracias, señor. Golfe? É? Vamos. Foi por aqui que aquele avião passou raspando. Muy loco, sí. É tão baixo. Planetário? Adoro. Nunca vim pra cá, apesar do time. Subúrbio. Que diferente. Eu imaginava maior, com o quintal na frente e não nos fundos. Uau! Que ótimo. Sim, recebi o Les Luthiers. Não, não entendi nada. Ah, o Chico. Chegaram bem? Sim. Vamos. Pisco sour. Perfecto. Salut. Buenas noches.

30.1.07

Upside down

Upside down, boy, you turn me. cinco, seis, sete, oito. uhu! ai. hahahaha. inside out. boy... uhu! não. brigada. quê? onde? valeu. meu, legal. um, dois, três, quatro. epa, olha aí mocinho. you turn me. não. não vi. onde ela tá? no sofá?! com quem? uhu! pra cá, vem mais pra cá. olha ali. sensacionallll. assim. up side down. around and round youre turning me. não, tá quente. instinctively you give to me. não, só com duas pedras, no copo baixo. the love that i need?! ahn? claro, claro. acompanha minha mão. agora vira. cinco, seis... hahahaha. não, eu vou cair! hey. desculpaí. but no one makes me feel like you do. cara, nem fudendo. upside down. deixa a mina. tá na boa. inside out. porra, perdi. tava aqui. I see to thee respectfully. ahn? desencana, vai. upside down... upside down? how? boyyyyyyyyyy, you turn me. hu! roda muito, caralho. upside down, youre, boy youre turn me. ar! eu preciso de ar. vamos? só mais um pouquinho, upside down. hahahaha. ha ha ha. ho ho ho. ai. vai. não, fica. tsc. então vai. vem cá. upside down, boy, you... youre turn me.



agora aperta o play e lê de novo. ;)

12.1.07

Aqui existia uma história que precisava ser contada. Essa necessidade já não existe mais. Obrigada aos amigos que a acompanharam até aqui.
Um beijo,
Ana

21.11.06

Cheiros de Eça

Era uma das suas sensações preferidas. Desajunar em silêncio, com os cabelos molhados, entrar num ônibus ainda com o dia nascendo e dormir enquanto viajava. A sensação era realmente confortante e especial. Acordava feliz e descansada no destino, com sorriso de orelha a orelha.

Naquele dia não foi diferente. Depois de dias estudando o romance folhetinesco, encontrar a casa do Eça (Eça foi de Queirós!) no meio de uma região lindamente reconstruída entre morros no Porto foi encantador. Assim ele a descreveu em A Cidade e as Serras: "Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte. A quinta está situada num alto, num sítio soberbo - que abrange léguas de horizonte, e sempre interessante. (..) Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro, logo por trás da casa, o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida".

O cérebro não parava. A boca nem abria. Juntava cada caco da novela dos últimos tempos e, de vez em quando, ria com o canto da boca. Pisava e olhava aquela casa como se entendesse porque o pires e a xícara estavam do lado esquerdo e não do direito na escrivaninha. O couro rachado da cadeira de couro era a prova das horas passadas pelo escritor ali.

A casa estava intacta e em plena atividade. Não havia aquele cheiro de ar parado que costumava haver em casas-museus. Já visitara alguns e não ter aquela sensação foi muito mais agradável. A casa estava tão viva que não resistiu aos odores e entrou na cozinha -- percurso completamente fora do percurso. O cheiro adocicado era irresistível. Olhou em volta e não achou ninguém. Nem uma viva alma que pudesse explicar o que havia sido preparado naquele panelão em cima do fogão caipira.

Abriu. O vapor subiu. Doce de cidra. Amargo e doce. Convidativo e repugnante. Perfeito. O grupo a procurava. Antes de voltar, todos decidiram investigar a cozinha do seu Eça. Como em qualquer lugar do mundo, ali a conversa vingou. Todos se soltaram, e ela voltou a emudecer. Só queria saber de ouvir e sentir naquele dia. Estava pra isso. Nada mais.

Piadas na namoradeira em volta da janela. Corou, sentiu-se presente e convenceu todos a comprarem um exemplar do mestre. Estavam ali para isso, pois não? A grande viagem começava embalada por cheiros e sentimentos. No dia seguinte, finalmente, a Espanha.

28.9.06

Xarás ou As Meninas sentaram no colo do Boca do Inferno

Incêndio em mares de água disfarçado!
Rio de neve em fogo convertido!
Sonhei que o fogo gelou
Sonhei que a neve fervia
Y por soñar lo imposible
Soñé que tú me querías


Do Porto a Vigo era um pulo. Estava tudo provado ali no mapa, que estava ali estendido em cima da cama. Um pulo. Mas esse pulinho parecia difícil demais. Sentiu que a doença descera pela cabeça até os membros. Estava paralisada ao lado do mapa. Não conseguiria sair dali sozinha.

Bateram na porta. Bateram na porta? Como? Ela teria de levantar para abrir a porta? Que sacanagem! Por que alguém bate na porta de um quarto de hotel? Com que direito? Atender ao telefone já seria um esforço terrível, que dirá levantar-se dali e abrir a porta. Não! Tragam a guilhotina! Portugueses estúpidos.

"Oi! Que bom que você bateu? Tá tudo bem?"

"Tudo ótimo. Sabe aquela maluca que está na minha sala de arquitetura?. Então, ela bateu na porta de uma cantora brasileira que também está aqui no hotel e conseguiu uns ingressos para nós três hoje à noite. Vamos?"

"Ela bateu na porta da mulher na cara dura? Por que alg..."

"Ela é louca. Mas vamos, vai ser divertido. Depois podemos ir dançar na boate do namorado dela."

"É? Mesmo? Tá bom, te ligo quando estiver pronta."

"A gente sai em 15 minutos."

A gente sai em 15 minutos. Odiava receber ordens, mas aquela xará ali era bem o tipo de amiga que ela estava precisando. Haviam se conhecido em Guimarães, admirando uns azulejos. Apesar de completamente diferentes, eram muito parecidas. A xará, pouca coisa mais velha, a tinha alertado sobre a razão daquele sentimento de paralisação corporal. O fundamento psicológico de tudo. A xará bravamente havia chegado até ali andando após meses de cama. Um milagre. Contou tudo à nova amiga numa noite boba, dessas que ninguém espera nada, mas que acabam se tornando cenários de grandes acontecimentos. Depois de horas conversando sobre fraquezas e tristezas, seria impossível não ficarem amigas.

Encontraram-se no hall e juntaram-se à maluca-cara-de-pau-namorada-do-dono-da-boate que já estava no táxi que as levaria ao show de outra xará. A segunda xará cantava grosso, gostava de dizer que era bissexual e fazia sucesso com uns hits românticos melosos bem grudentos. Definitivamente aquele programa não tinha nada a ver. Mas era preciso andar; e era tudo gratuito; e era tudo tão sem propósito, que se deixou levar, prometendo a si mesma que não seria o bode da noite.

E não foi. Divertiu-se muito, como há realmente muito não se divertia. O show era uma merda incalculável. Show em teatro, com pessoas sentadas, que tentam controlar as pernas e ficarem acomodadas. Ela levantou, carregou junto as outras duas e mais um bando de brasileiros que precisavam dançar. Foram para a frente do palco e dançaram. Ali eles não tinham nomes, telefones, documentos válidos ou contas no banco. Eram um bando de ninguém. Se ela soubesse antes que o remédio era simples assim...

Do show para a boate, e lá dois jogadores de tênis, que deveriam ser da equipe juvenil portuguesa, entenderam finalmente o que eram aquelas brasileiras.

[Lígia Fagundes Telles ocupa a cadeira de Gregório de Matos na ABL. Ele é o autor das duas primeiras estrofes da epígrafe; a primeira referência que aparece no Google à frase "Incêndio em mares de água disfarçado!" é um texto que escrevi para o Sinapse, da FSP, há muito tempo, numa outra entresafra. link. Caminho: poema > Google > ABL > xarás-Meninas > Google > Sinapse > Nelson > Otto > sinapses]

8.9.06

Sedaduas /interlúdio/

Saberia anos depois que as saudades poderiam ser ainda mais doloridas, mas até ali achava que estava no limite. Continuar caminhando estava pesado demais. Havia sido descoberta no meio da fuga. Que saudades dela. Suas duas outras personalidades estavam tão tristes com aquilo tudo, um planejamento tão bem estruturado estava indo por água abaixo. Que saudades. Ela (mas quem era ela?) morria a cada minuto. Ela pertencia a ele e não mais a ela. Como seu codinome, que era dele, em todos os sonhos, em todos os sentidos, sem ter sentido todos os sentidos. Eram sonhos, vontades e desejos reprimidos. Uma sufixo dela já havia alertado. Não há dor mais triste para um coraçãozinho que a de não ter vivido. Não viver era a antítese de tudo que ela e todas as suas personalidades acreditavam. E ela acreditava nele. E por acreditar nele, acreditava nela (nela inteira). E era bom acreditar nela. E era bom ter a certeza dele. Que saudades! Se.da.duas. Saudades. Novamente era preciso caminhar e sair daquilo. Não como fugitiva. Mas de cabeça erguida. O fim daquele ciclo estava próximo. Só não sabia se teria ele ao lado dela. Mas era louca por ele. E a loucura era motriz. Fonte renovável impulsionada pela distância e pela filha-da-puta das saudades. Se (Cê) da duas?

30.8.06

Romanticamente românica

O seu calendário particular de efemérides acabava de ganhar mais uma data para fazer par com o Dia da Rosa, era o Dia do Chico. Naquela manhã de viagem programada, as músicas ficavam pulando randomicamente na sua cabeça e as novas construções formavam letras absurdas, mas que por razões ilógicas passavam a fazer todo o sentido.

O recepcionista do serviço de despertador parecia gritar: "Acorda, acorda, acorda, são 6h15".

"Salazar não gostaria de ouvir você me tratando assim", pensou, mas agradeceu fazendo um ruído qualquer.

Chico continuava lá na sua cabeça, brincando de DJ, quando a lembrança de que em poucos minutos estaria na estrada, protegida pelo asfalto liso e aconchegante da A4 e seus pensamentos, correu para reler seu itinerário.

Finalmente começaria a ver o que estava procurando, o barroco. O impressionante e descabido barroco português. Após tantas aulas de cultura celta, castreja e romanização, as grandiosas obras guardadas em todas aquelas edificações religiosas estavam mais perto dos seus olhos.

A primeira parada era Braga. Sentiu por ler Barcelos, mas ver que não pararia ali. Espantou o pensamento infatilóide de querer ver um galo iluminado, que cantou depois de assado para salvar um peregrino a caminho de Santiago. Riu. O que se pode fazer depois de reviver essa lenda absurda? Sua busca era lógica, racional e passava longe desses caminhos de Santiago.

Braga, suas escadas, órgãos seculares, sobe e desce, sobe e desce, e como sobe-se. "Raios! Se esticassem as ladeiras das cidades do norte de Portugal, o tamanho da região dobraria!"

Um choque ao entrar na Sé de Braga. O calor que insistia em fazer par com uma luminosidade incômoda transformarou-se num dueto de frio e escuridão. Os sentidos despertaram em menos de um segundo. Ela não conseguia enxergar, sentia muito frio, o ar parecia escasso e um cheiro de umidade impregnava o paladar. Virou-se, saiu da igreja, recuperou-se da passagem sombria por aquele portal e mergulhou novamente na nave.

Uma professora apaixonada começou a falar das belezas românicas daquela arquitetura quando uma voz rouca, masculina, passou a contar para um grupo de senhoras a história de cada um dos apóstolos que estavam em relevo no transepto.

Não precisou se esforçar para distanciar-se da professora e passar a acompanhar os causos contados por aquele guia curioso. Simão, Tadeu, Mateus, Felipe, Tiago -o maior, Mateus, João, Judas, Pedro, André, Tiago -o menor e Bartolomeu. Cada um daqueles homens carregava uma história mítica e engrandecedora. Quem se importava em verdades cientificamente comprovadas quando se tinha milênios de histórias fantasiosas ou não para conhecer pela frente?

Sentou-se paganamente num daqueles bancos de oração e ficou de olhos fechados ouvindo as histórias dos santos que mantiveram o ícone de Jesus popular. Deixou-se levar e agradeceu aos romanos por terem pensado em fazer construções tão duradouras como aquela. Sim, era o ópio do povo, mas no momento era a sua grande diversão.

A longa volta em silêncio tibetano para o hotel foi muito bem acompanhada por aqueles 12 homens e mais um Francisco, que teimava em cantar. Escorregou pela cama e, ato falho, abriu e conectou o computador. Um e-mail. Uma única mensagem. "Ouvi Chico o dia inteiro. Saudades."

25.8.06

Momento Douro

A fama do Porto está no vinho. Licoroso, para ser tomado em pequenas doses, de pouquinho em pouquinho. Os afoitos viram garrafas no meio dia, porém a bebida não é para iniciantes, ela pede controle e respeito.

Numa terra sem aventuras, castelos ou parques de diversão, o vinho do Porto é uma boa distração. O rio Douro está ali, mais pra duro que pra ouro, e a Vila Nova de Gaia segura o papel de cenário. Todas aquelas marcas conhecidas estampadas nos armazéns de telhados vermelhos que produzem a bebida.

Um calor danado e a leseira pós almoço já a estava sufocando quando entrou na cave. Perfeita a escolha, aliás. O ambiente aclimatado dava aquela vontade infantil de tirar o sapato e deitar no chão para se refrescar.

E o cheirinho do local? Nada, nada parecido com as casas de produção do Sul. Aquele vinho tinha clima de bebida destilada. Ainda sóbria foi andando embriagada pelo cansaço e pelo cheiro do local. A vista começava a falhar, o pensamento ia longe. Outro delírio a caminho.

Enquanto se arrastava, alguns tonéis sangravam finas linhas de vinho pelos suportes brancos. Tudo era escuro, frio e controlado. Um mosteiro pagão para a bebida cristã. As informações todas que havia absorvido nos últimos dias se embaralhavam. O homem de capa preta, iluminado por uma luz seca e amarela, a olhava e a convidava a sair dali.

A luz vermelha da saída não piscava. Abria e fechava os olhos, e ela permanecia lá. Um, dois, três passos retos e pronto. Fim da visita. O salão espelhado, barulhento e animado aguardava a todos daquele pequeno grupo para provar o que se produzia lá dentro.

A degustação oferecia três tipos do vinho. O primeiro que provou foi o ruby, um vermelho-sangue, que chegou chegando e mostrou que ali a brincadeira era para adultos e bravos, os fracos não tinham vez. Ela experimentou e declinou. O segundo, o tawny, era ameno, mas não tinha a personalidade do primeiro, e situações indecisas não eram para ela. Gostava das coisas inteiras, mas tinha ficado assustada com ruby. Ela provou e desistiu. O terceiro, o branco, estava na lista dos renegados automaticamente. Mas estava calor, ela estava assustada e cansada, variar e escolher algo mais tranquilo parecia uma boa idéia. Ela gostou do que viu e se perguntou: por que não? O branco era bom.

Reanimada com a qualidade do álcool, disparou a conversar com os outros do grupo. Até ali tinha se mantido distante, observadora e fugia sempre que podia. Mas aquela carioca sentada ao lado era tão simpática, falava de teatro com tamanha propriedade e doçura que ela logo se encantou e entrou na conversa. Vinhos e bons papos. Ótimo.

Enquanto todos começavam a recusar outras taças. Ela e a carioca se animavam e democraticamente dividiam o duopólio da conversa quando a jornada ao centro da Terra começou.

- Então tu conhecias meu marido, questionou a carioca.

- Acho que não, quem era seu marido?

Ela havia perdido o começo da história e decidiu entrar quando Zé Celso era o assunto.

- Ué, eu sou viúva do Vianinha, não te falei?

- Não, me desculpe, estava distraída. Você era mulher do Vianinha então?

- Era, sim. E, olha, nunca conheci alguém tão novo que soubesse tanto sobre ele.

Foi a deixa. Não conseguia continuar agindo espontaneamente quando era elogiada em público. Pelo menos tinha um bom repertório e sacou rápido uma resposta.

- Culpa do Décio Almeida Prado, né? Você sabe, ele ensinou tudo de teatro pra gente.

Olhou para todos e percebeu que tinha piorado a situação. Pelas caras, aquela gente não era a gente a quem o Décio tinha ensinado tudo.

A carioca, do alto da sua excelente percepção, aguçada ainda mais pelo vinho, concordou.

- Sim, o Décio era ótimo. Ensinou tudo pra TODO MUNDO.

Sorriram em sintonia e voltaram caminhando juntas pelo mormaço da margem do Douro.

22.8.06

Branca, pura e talvez virgem

Lembrava exatamente a explicação do tio, muitos anos antes, sobre o que era -com todo o preconceito possível embutido na definição- uma casa de português. Entre uma pisada e outra na areia escura, típica do litoral paulistano, identificava os horrores arquitetônicos apontados sem pudor pelo tio em frente ao sobrado de um de seus amigos da praia. Todo feriado, a casa parecia estar maior. E o tio, do alto da sua altura de adulto, apontava e gesticulava freneticamente diante das reformas do mesmo jeito que os guias de museus interpretam grandes obras. Ela dedicava toda a sua atenção àqueles momentos, como se estivesse diante de um grande sábio que desnudava aquela construção, por que não dizer, insólita.

Foi assim que a ampulheta girou 180% e ela se viu olhando as mesmas construções, só que agora em dezenas grudadas umas nas outras, nas ladeiras de condições favelares do Porto Alto. Aquele desastre monumental de azulejos estampados, lajes empilhadas, esprimidas e sufocantes compunham um mosaico interessante. Era horrível e belo.

Ao final da ladeira, escondeu o relógio. Perto dela conversava animadamente um grupo de jovens que carregava características similares ao pessoal que negociava a branca, pura e algumas vezes nem tão virgem cocaína colombiana nas periferias. O professor do curso de história nem percebeu as reações brasileiras. Afinal assalto não era o objetivo local. Eles não eram tão profissionais como os nossos.

Acima da ladeira, estava a belíssima Catedral do Porto, onde outra branca, pura e talvez virgem noiva chegava para se casar. A oportunidade era única. Ser penetra num casamento português era melhor que qualquer curso de história. Ali a história era viva. Separou-se do grupo, correu ladeira acima e entrou, misturada aos chapéus das convidadas, na Catedral.

O casamento pode ser uma cerimônia linda, inesquecível, e aquele não deixava nada a desejar. Os noivos eram lindos e pareciam ter ensaiado muito bem para aquele momento. Os convidados sentavam e levantavam harmoniosamente acompanhados pela pequena orquestra. Libretos encadernados em veludo azul-marinho foram deixados nos bancos para melhor acompanhamento da missa.

Ao final, durante a saída dos noivos, uma simpática mostra de devoção. A noiva deixa o lado do noivo e dirige-se ao altar para entregar seu buquê à virgem, já que a idéia agora é que em instantes ela se torne uma não-virgem oficial. Eles finalmente saem. O altar de prata mexicana, a barroca imagem de São Francisco com ouro brasileiro, a rosácea de mármore branco e granito verde e vermelho do italiano Nicolau Nasoni ficam para trás.

Cinderela lusitana deixava o sonho de noiva para encarar a dura realidade do casamento. Ao passar pela porta da Catedral, o noivo soltou seu braço, correu em direção a sua mãe, chorou emocionado e partiu para a festa com sua família, deixando a noiva para trás, sozinha, estática, imaginando o que viria depois.

17.8.06

O sexo dos anjos

Uma praça redonda com um carvalho gigante como o cajueiro de Natal foi a melhor parte da recepção no mergulho pelo centro da cidade. O Porto estava definitivamente em obras. A metáfora óbvia de quem precisa consertar muitas coisas na própria vida.

Cenas clichês de quem acabava de chegar a um lugar eram bem-vindas. Não deixou de abrir o vidro para sentir o vento e o aroma locais, de sorrir para crianças e velhos vendedores de sardinhas nas calçadas. O novo é sempre bom e a bossa ali era completamente nova.

Já estava rindo da aterrissagem atribulada, meio cambaleante, na estação de trem até descobrir que o hotel em que estava hospedada tinha duas sedes, uma ao lado da outra, uma para pais de família ficarem com suas famílias e outra para pais de família desestressarem de suas famílias.

O sábio taxista a deixou no hotel da segunda categoria. A deliciosa lógica lusitana entrava em ação. Ela era brasileira, viajava sozinha, logo deveria trabalhar como desestressadora de pais de família.

Estava parada ali, em frente ao hotel, que apesar do nome e do endereço corretos, não era o mesmo da foto da Internet. Arrastou a vermelhona escada acima, foi acompanhada milimetricamente pelos portugueses do local e, em apenas 15 minutos, descobriu que não tinha reserva alguma em seu nome.

“Fui enganada, fui enganada, fui enganada”, não conseguia parar de repetir o mantra da confusão que estava se anunciando. Quando, aparentemente sempre eles, um educado porteiro se dirigiu ao balcão e disse num português razoavelmente compreensível: “Acredito que sua reserva fora feita no hotel ao lado, não me parece que ESTE é hotel para a senhora”. Santo homem de terno cor de vinho.

Muito gentilmente, o sutil salvador número 2 pegou a vermelhona, desceu a escada, carregou-a pela rua até a esquina e entrou no hotel certo. Desculpou-se exageradamente. Parecia se perdoar por todos erros de seu povo, da escravidão dos negros até aquele maldito momento. Deixou um sorriso no ar com algumas outras intenções. O recado honesto de que ela saberia onde encontrá-lo caso precisasse desestressar. Qual era o sexo dos anjos mesmo?

20,5 kg a mais

Não se lembrava como tinha chegado até ali. A luz que refletia nos seus olhos pelo vidro do trem era de um amarelo cegante. Com a visão de quem acaba de acordar, ainda gritava na mente os 20,5 kg em vermelho que marcavam o peso da mala na balança do aeroporto. Como iria conseguir carregar aquilo agora? Dormindo acordada, mirava e não entendia o que lia nas placas no caminho que levava de Lisboa ao Porto. Sabia-se arrogante por pensar assim, mas era infinitamente mais fácil ler e compreender as indicações em inglês do que naquele português que não era o dela.

"Seu bilhete", disse-lhe o moço.

"Sim, eu sei, preciso colocar urgentemente meus óculos escuros", pensou.

Abriu a bolsa com aquele gesto calculado de quem está acostumada a viajar e sabe o compartimento certo para cada item. Óculos bem em cima, bilhete no bolsinho fechado com zíper, onde também ficam os cadeados das malas, passaporte e papéis da imigração na carteirinha preta de couro antiqüíssima e bem conservada da Transbrasil. Mas os 20,5 kg da mala agora estavam em seus olhos e nada fazia sentido naquela bolsinha, tão leve e tão perfeita, que gostava de carregar.

"Finalmente, aqui está você."

"Tudo certo. Obrigado e boa viagem."

Boa viagem, boa viagem, boa viagem.

Mas afinal o que era aquela viagem? 20,5 kg de roupas para 15 dias, tudo calculado para não haver combinações repetidas durante o dia ou a noite. Uma bota absurda para as calçadas de pedras portuguesas, um salto desconfortável para acompanhar as aulas, um tênis modernoso para salvar o dia, a noite e quem sabe até a vida, um mocassim de pêlo de coelho, um salto médio, outro salto alto, uma sandália e um chinelo. Como tudo isso pesava e como tudo isso era fundamental.

Mas afinal pra que aquela viagem? Precisava sair do Brasil, isso estava certo. Foram 40 dias ininterruptos trabalhando de madrugada. As olheiras estavam mais visíveis do que nunca, as costas arrebentadas, o cabelo, bom o cabelo havia sido cortado dias antes, e as unhas por um milagre inexplicável sobreviveram fortemente às horas dedicadas ao computador. Quinze dias em Portugal estudando história, literatura e arquitetura.

Mas afinal pra que inventar essa viagem? A explicação era tão óbvia que parecia completamente idiota, como foi completamente idiota carregar 20,5 kg numa mala com oito pares de sapato e mais palm e notebook. Sem considerar os quilômetros de fios e diferentes plugues para carregar a bateria de todo esse equipamento nas tomadas. As tomadas do mundo são incríveis. A capacidade de inventar modelos distintos só não era mais irritante que a diferença na medida dos calçados. Não poderia ser tudo em centímetros? Claro que não! Porque quando carrega-se oito pares de sapatos para freqüentar por 15 dias um curso de história, literatura e arquitetura é porque a vida está realmente complicada.

Ir para Portugal para estudar e conviver entre pessoas que entendiam a razão de ser brasileiro era a resposta publicável. O que sabia mesmo era que na verdade ali havia uma fugitiva, que na impossibilidade de voltar pro útero, decidiu voltar para o lugar de origem do seus sobrenomes.


Sabia bem como essas viagens a deixavam nacionalista. Patriotismo babaca de quem acha que o Brasil pode ser um lar. Sim, o é, mas não é. Estava tentando apagar a lembrança de uma outra viagem sensacional, que rendeu uma viagem perturbadora, que acabou provocando uma viagem ainda mais dolorida. Fugia dele para viver com ele. Difícil. E Portugal seria o salvador dessa pátria amada chamada ela mesmo. A volta ao útero da pátria-mãe 500 anos depois. Que babaquice! Só ela mesmo para inventar essa puta desculpa filosoficamente babaca para assumir para si mesma que só queria uma desculpa para sair de casa, esquecer um amor fracassado e tentar conhecer gente nova. Simples assim, como muitas viagens que mulheres sozinhas fazem a toda hora pelo mundo todo. Ela era apenas mais uma. Mas a desculpa do curso era interessante.

Maiô. Havia esquecido completamente. Também, com o frio julino que fazia em São Paulo, era impossível lembrar que era verão em Portugal. Olhou bem as raparigas nas represas e teve certeza que ninguém encarava aquela água. Não haveria tempo nem clima para isso no Porto. Bobagem. Quanto pesa um maiô? Maiô, não, um bíquini. Maiô é tão chique de dizer, mas tão chato de usar. Como havia conseguido chegar naqueles 20,5 kg? E ainda o iBook e todos aqueles fios. Não era possível. A rainha do viajar de mãos vazias agora estava sobrecarregada.


Viagens são assim, quando fazer a mala já complica é porque está difícil sair de casa. Muita ansiedade, muita vontade de sumir do mapa e muito medo. Sabia bem como essa lógica era perfeita nas suas andanças, quando as coisas fluem bem, elas simplesmente fluem bem. Dessa vez não. Tudo era barroco.

E essa vontade de desembarcar em Lisboa e seguir de trem até o Porto? Pra que isso agora? O valor da passagem era o mesmo caso quisesse desembarcar no Porto. Mas descer em Lisboa e pegar um trem dava um ar de independência tão bom. Na terra do viajar é preciso, era realmente preciso viajar.

Toda vez que ia a Portugal ficava incomodada ao ver as mulheres em grupos. Tão baixinhas, tão carrancudas, tão bravas e sem graça. Era fácil descobrir quem não era autóctone. As portuguesas tinham aquela cara de poucos amigos, o que era ótimo para as brasileiras. Os portugueses as adoravam. Para entrar na imigração era um custo, mas as adoravam. Até o curso tão bem regulamentado pela Universidade do Minho despertou a curiosidade do jovem de cabelos negros portugueses na chegada. O simpático, bonitinho, queria saber por que não aproveitava para viajar mais em vez de voltar logo depois do fim das aulas. "Ah, meu querido, eu ficaria até um mês a mais se você carregasse toda essa tralha pra mim e dirigisse lindamente sua Mercedes pra lá e pra cá comigo sentada confortavelmente ao lado, só desligando o ar-condicionado para abrir a janela e fumar", teve vontade de dizer.

Sorriu amarelo e deu a resposta-padrão: "Tenho de voltar para trabalhar". Sim, trabalhava, quase 12 horas por dia, e inventava esses cursos para fugir do trabalho e dos amores fracassados.

A estação de trem do Porto estava quase chegando. Dali era pegar um metrô e tchum no colchão. Endireitou-se na poltrona, olhou pra trás e viu os 20,5 kg embutidos naquela mala vermelho-salsicha. Tentou encaixar a alça do notebook no ombro, ensaiou levantar, mas desistiu e resolveu esperar a parada. Por alguns segundos esqueceu tudo e conseguiu apenas ficar feliz por estar ali e daquele jeito, que não era exatamente o seu.

O trem parou. Encarou a vermelhona, respirou fundo e tentou não tropeçar. Conseguiu descer com tudo aquilo sem ser arremessada. Viu que algumas pessoas empilhavam as malas em carrinhos carregados por senhores muito idosos e teve uma péssima sensação de estação Tietê. Declinou. Voltou às placas. Andou de um lado pro outro da plataforma e não encontrou escadas rolantes. Não, deveria ser piada. Não ter escada rolante na plataforma principal da estação do Porto era absurdo demais para ser verdade. Não haviam placas e todos desciam as escadas carregando seus malotes com a mesma disposição de sacoleiros na Ponte da Amizade.

Ficou olhando para a escada, que no final dava em um corredor estreito e com tapumes no chão. Novamente o torpor dos 20,5 kg gritando em vermelho no mostrador da balança fechou sua respiração. Segurou forte a alça da mala e desceu aqueles 25 degraus.

Estação portuguesa. Chegou ao térreo para descobrir que havia outra escada, igual a que tinha acabado de descer, para chegar à rua. Se apoiou no corrimão e cogitou desistir. De repente um braço musculoso e bem definido comprimido na manga de uma camiseta branca agarrou sua mala. Quando entendeu o que estava acontecendo, a vermelhona já estava no topo. Subiu correndo, agradecendo de longe, mas quando conseguiu alcançar a calçada só viu o homem correndo para atravessar a rua. Era um passageiro do banco ao lado. Anjo musculoso português salvador de brasileiras fraquinhas. Sim, havia esperança.

O sol estava lindo. As Mercedes beges todas enfileiradas. As obras na estação eram para a construção do metrô. Dinheiro alemão para fazer Portugal merecedor do Mercado Comum. Tudo era óbvio e voltava a fazer sentido. Agora era só entregar as malas a um taxista e curtir o caminho até o hotel.

7.5.03

;)