21.11.06

Cheiros de Eça

Era uma das suas sensações preferidas. Desajunar em silêncio, com os cabelos molhados, entrar num ônibus ainda com o dia nascendo e dormir enquanto viajava. A sensação era realmente confortante e especial. Acordava feliz e descansada no destino, com sorriso de orelha a orelha.

Naquele dia não foi diferente. Depois de dias estudando o romance folhetinesco, encontrar a casa do Eça (Eça foi de Queirós!) no meio de uma região lindamente reconstruída entre morros no Porto foi encantador. Assim ele a descreveu em A Cidade e as Serras: "Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte. A quinta está situada num alto, num sítio soberbo - que abrange léguas de horizonte, e sempre interessante. (..) Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro, logo por trás da casa, o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida".

O cérebro não parava. A boca nem abria. Juntava cada caco da novela dos últimos tempos e, de vez em quando, ria com o canto da boca. Pisava e olhava aquela casa como se entendesse porque o pires e a xícara estavam do lado esquerdo e não do direito na escrivaninha. O couro rachado da cadeira de couro era a prova das horas passadas pelo escritor ali.

A casa estava intacta e em plena atividade. Não havia aquele cheiro de ar parado que costumava haver em casas-museus. Já visitara alguns e não ter aquela sensação foi muito mais agradável. A casa estava tão viva que não resistiu aos odores e entrou na cozinha -- percurso completamente fora do percurso. O cheiro adocicado era irresistível. Olhou em volta e não achou ninguém. Nem uma viva alma que pudesse explicar o que havia sido preparado naquele panelão em cima do fogão caipira.

Abriu. O vapor subiu. Doce de cidra. Amargo e doce. Convidativo e repugnante. Perfeito. O grupo a procurava. Antes de voltar, todos decidiram investigar a cozinha do seu Eça. Como em qualquer lugar do mundo, ali a conversa vingou. Todos se soltaram, e ela voltou a emudecer. Só queria saber de ouvir e sentir naquele dia. Estava pra isso. Nada mais.

Piadas na namoradeira em volta da janela. Corou, sentiu-se presente e convenceu todos a comprarem um exemplar do mestre. Estavam ali para isso, pois não? A grande viagem começava embalada por cheiros e sentimentos. No dia seguinte, finalmente, a Espanha.

2 comentários:

Anônimo disse...

Anita, seus textos estão uma delícia de verdade! Não deixa de postar mais, não? Please? Quero saber a história toda! :) beijão!

Anônimo disse...

pois é, moça da frase bonita.
acho que tô inspirado. Mas também, pudera, foram três livros finalizados só essa semana. Estou com letras até as tampas.

...e esse blog deveria se chamar diário de além-mar ;) vou ali que um cappuccino gelado me aguarda.